Grécia
A
paixão pela Grécia começou nos meus verdes anos, quando eu morava no Rio de Janeiro e frequentava um bar em
Copacabana, cujo dono, Constantin Tsamis, era um grego de Atenas. O homem
ficava feliz com minha curiosidade juvenil sobre sua terra e desfiava um
rosário de relatos sobre o país.
Depois, me transportava em pensamento para as ilhas
gregas de nomes mágicos, como Hydra, Poros, Aegina, Creta, Thira, Rodes. Algumas eu já conhecia
de nome, quando da leitura de "Solo de Clarineta", do Érico Veríssimo, onde ele até faz um poema usando apenas esses
nomes misteriosos das ilhas. Aliás, os nomes gregos, por si sós, já são poesia
pura...
Outro frequentador do bar, o jovem carioca Paulo
Quadrado, que já estivera na Grécia, sempre ia conversar com Constantin e
inflamava mais a minha imaginação com seus estórias sobre gloriosas caminhadas
de mochila nos campos floridos da região macedônica da Grécia. Não confundir
com o país Macedônia, na mesma região, cuja capital é Skopje.
Nessa mesma época estava passando no Rio o filme "Zorba, o Grego", de Michael Cacoyannis, um cineasta francês de
origem helênica que, por sinal, faleceu recentemente.
Pronto! Foi o que bastou para que eu me enamorasse
perdidamente por aquele país que já vinha me fascinando há tempos.
Que riqueza psicológica tinha o cretense Zorba,
magistralmente interpretado por Anthony Quinn!
E o Alan Bates no
papel do inglês incauto que cai na armadilha empresarial-existencialista de
Zorba?
O que dizer de Madame Hortense, a
"Bouboulina", que ganhou vida com a fantástica atriz russa Lila Kedrova?
Em uma das cenas Bouboulina evoca o almirante
Canavaro, da marinha de guerra italiana e um dos seus numerosos amantes, que
fora defender a Grécia, pátria intelectual da humanidade, das garras do império
otomano. "Canavaro, Canavaro mio", dizia ela...
Lord Byron, o poeta britânico, também deu sua vida na Batalha
de Missolonghi, em defesa dos mesmos ideais.
Em seguida, procurei o livro que deu origem ao
filme. Tratava-se do título "Alexis Zorbas", escrito por Nikos Kazantsakis, grande escritor cretense, comunista convicto.
Fiquei mesmerizado com a obra de Kasantsakis e
passei a devorar tudo o que ele havia escrito. Entre outros, descobri o seu
intrigante "Cristo Recrucificado" e o seu memorável e definitivo,
"Testamento para El Greco". Nesse último livro ele presta contas de
sua vida ao famoso pintor El Greco, seu conterrâneo e mentor intelectual, apesar de
terem vivido em épocas diferentes. O pintor viveu entre 1541 e 1614, foi morar
em Toledo, Espanha
e tornou-se o artista favorito da corte de Felipe II. Kazantsakis nasceu em
1883 e faleceu em 1957.
Quando estive na ilha de Creta, tentei encontrar o
túmulo de Kasantsakis nos cemitérios locais. Me disseram que seu corpo não
havia sido aceito por nenhum dos cemitérios locais por ter sido comunista e que
eu procurasse numa colina, fora da cidade.
Lá fui eu em busca do túmulo, encontrando as mesmas
dificuldades que muitos enfrentaram ao tentar localizar a última morada de
Federico Garcia Lorca na Espanha. Ninguem sabia de nada, ninguem queria
se comprometer...
Acabei encontrando o local e prestei minha
homenagem ao grande escritor, que jazia, modestamente, sob uma cruz de madeira
muito simples e isolada.
Seu epitáfio: Δεν ελπίζω τίποτα. Δεν φοβούμαι τίποτα. Είμαι ελεύθερος ("Não espero nada. Não temo nada. Sou
livre.")
No seu testamento ao pintor o então jovem Nikos lhe
dedica, poeticamente, suas viagens de descoberta que fez pela Grécia e Itália.
Essa península é constituída de três pequenos cabos
e fica perto de Thessaloniki (Θεσσαλονίκη), a Salônica das pregações do apóstolo Paulo, segunda cidade grega em tamanho, depois da
capital, Atenas. Lá são formados, até hoje, os sacerdotes ortodoxos gregos.
Kazantsakis conta estórias incríveis sobre os
monges, suas buscas pela perfeição espiritual, entremeadas de boas doses de
erotismo entre eles...
No início os monges moram todos juntos no
monastério. À medida que sentem a necessidade de maior aprofundamento
espiritual, sobem um pouco mais a montanha sagrada e passam a morar em
refúgios, onde cabem somente dois ou três deles.
Finalmente, aquele que resolve abandonar
definitivamente as coisas mundanas, retira-se, sozinho, para cavernas de
difícil acesso, que ficam em penhascos sobre o mar.
Depois de chegar a uma dessas cavernas o asceta não
se alimenta mais, no intuito de atingir um estado de êxtase. Apenas deixam uma
cesta de vime pendurada sobre o abismo, quase a flor d'água, para que algum
pescador, compadecido, deposite um peixe.
Quando chegam ao auge da subnutrição acreditam que
já estão leves o suficiente para flutuar e alçam voo, espatifando-se nas rochas
lá em baixo.
Montes de esqueletos sobre as rochas atestam essa
patética escolha, o que pude constatar, anos mais tarde.
Que coisa fascinante! Eu precisava ir a Grécia!
Isso só veio a acontecer muito tempo depois.
Em uma das minhas seis viagens a Grécia, fui
conhecer o Monte Atos, com o livro de Kazantsakis debaixo do braço.
Para tanto, precisei conseguir um visto de entrada
na república monástica, em seu consulado ateniense.
A coisa acontece assim: depois de uma minuciosa
entrevista feita por um "papás", sacerdote cristão ortodoxo, o visto
pode ser concedido ou não.
Fui questionado sobre o porquê da minha visita,
como tomei conhecimento do lugar, qual a minha religião, etc.
Respondi que era um brasileiro curioso sobre
costumes e religiões e estava na minha busca espiritual.
O religioso me olhou sério, depois sorriu e,
finalmente, concedeu-me o tão esperado visto.
Esse salvo conduto me permitia passar uma semana no
Monte Atos, comendo e dormindo de graça em qualquer um dos dez monastérios
abertos à visitação.
A região abriga uns vinte e tantos monastérios,
muitos em ruínas e desativados, quase todos construídos nos anos 800 DC.
Fui de ônibus de Atenas a Thessaloniki. De lá,
peguei outro ônibus para a pequena cidade de Uranópolis, na
divisa grega com o protetorado.
Durante a viagem, o cobrador avisou que iríamos
cruzar o Canal de Xerxes, uma pequena depressão na estrada. Foi o que
restou do grande canal que o rei persa Xerxes mandou abrir para isolar e
derrotar os gregos que se encontravam aquartelados no braço norte da Península
da Calcídica, durante a segunda Guerra Médica ou Greco Pérsica (480 AC). Com a
abertura do canal resolveu, tambem, o problema de contornar o Monte Atos, com
suas fortes tempestades que assolavam os navios persas.
Uma obra que durou meses para ser concluída, hoje
está aterrada e os menos avisados nem percebem que estão passando por um lugar
que foi um dos palcos de mudanças no curso da História.
Pernoitei em Uranópolis para pegar o barco no dia
seguinte.
A noite saí para conhecer aquela cidadezinha
perdida no norte da Grécia. Passei por uma igreja onde estava sendo realizado
um casamento.
Na igreja puxei conversa com algumas pessoas,
usando as frases que decorei em grego, um pouco de inglês e mímica. Fiz
entender que era do Brasil, o que provocou uma admiração estrondosa e me rendeu
um convite para a festa de casamento que seguiu-se à cerimônia religiosa. Fui tratado
com deferência especial, posei com os noivos e fui brindado com ouzo, retsina e outras bebidas típicas gregas. O banquete
constava de comidas típicas gregas, naturalmente maravilhosas.
Acabei a noite dançando, de porre, junto com os
comensais. Dançamos o Sirtaki, e
outras danças danças com lenço.
Fui gentilmente carregado até meu hotel e dormi
sonhando com Ulisses e sua
jangada. Feliz, me sentindo o mais grego dos brasileiros, o próprio Zorba...
No Monte Atos
Na manhã seguinte, ainda de ressaca, fui cedinho
tomar o barco para Karyes, o
pequeno porto de entrada da republiqueta.
A viagem é encantadora. O barco viaja bem junto à
costa da península, permitindo visões belíssimas das montanhas e dos vilarejos
litorâneos.
Na chegada ao porto, os monges fazem uma inspeção
visual nos passageiros para certificar-se de que nenhuma mulher está entrando
disfarçada de homem.
O acesso só é permitido a homens e animais do sexo
masculino, a fim de evitar tentações, dizem eles.
Várias vezes, mulheres desprendidas, tentaram, em
vão, entrar travestidas de homem.
Acho que isso é apenas uma tradição, pois os
"papás" e "calóieros" podem sair de vez em quando e ficar
livres para satisfazer suas necessidades.
É bem conhecido, tambem, o comportamento liberal
dos monges, que fazem vistas grossas diante dos casos de homossexualismo,
prática muito comum entre os mais jovens.
Os passageiros do barco foram conduzidos ao prédio
onde funcionava a administração local. Passamos por uma estalagem onde girava
no espeto um enorme javali, perfumando os ares com o aroma de carne assada,
entremeado de aromáticas ervas, como hortelã, basilicão e tomilho.
Depois das formalidades iniciais, fui liberado e
designado para ficar no monastério Simonos Petras, a uns cinco quilômetros dali.
Acompanhado de dois rapazes gregos, tambem
peregrinos, tomamos a estrada e fomos caminhando por entre árvores
frutíferas, flores, verduras, borboletas, insetos.
Ao longo dos séculos as hortas e jardins
extrapolaram os seus limites iniciais e tomaram conta de toda a península,
transformando-a num imenso jardim do Éden.
Fomos catando nozes e avelãs pelo chão e deliciando
o paladar com aquele maná.
Perguntei aos rapazes sobre sua visita e eles me
disseram que muitos gregos fazem essa peregrinação para cumprir promessas ou
buscar solução espiritual para diversos problemas.
Me alertaram sobre o comportamento dos monges,
alguns "anômalos", devido as suas preferências sexuais.
Fomos recebidos no monastério pelo monge Stavrós,
que nos ofereceu doce de morango servido numa colher de sopa e café com borra
no fundo, segundo as mais puras tradições da região.
Em seguida, fomos levados aos aposentos reservados
aos peregrinos, passando sob pérgolas que circundavam um pátio interno,
transportando-nos definitivamente para a idade média. Me senti num cenário do
filme "O Nome Da Rosa"...
Os rapazes ficaram juntos em um quarto e me
colocaram em outro, com uma janela fantástica para o mar, pendurado a uns 30 m
acima d'água.
As paredes do monastério devem ter uns dois metros
de espessura, verdadeiras fortalezas penduradas nos penhascos, prontas a
enfrentar os ventos e os ataques inimigos que aconteceram ao longo dos séculos.
Fui ao banheiro e vi que o vaso sanitário não tinha
fundo, deixando avistar o mar quebrando nas rochas, lá embaixo.
Achei o máximo usar aquele vaso, fazendo pontaria
nas ondas com minha munição inusitadamente fecal! Os peixes deviam fazer fila
nessa hora de "délivrance" para mim e de almoço para eles. Banheiro
mais ecologicamente correto não pode haver...
Na hora do almoço nos convidaram a sentar à mesa
com os monges, quando foi servida uma refeição que constava de sopa de legumes,
deliciosa, com muito azeite de oliva e, na sequência, sardinhas fritas. Muito
pão integral para acompanhar. Sucos de frutas e café, para finalizar.
A tardinha fomos convidados a participar do culto
religioso, rezado segundo a Igreja Ortodoxa Cristã, bem diferente da missa da Igreja Cristã Romana
que conhecemos.
Nessa celebração estão preservados os elementos
primitivos do verdadeiro culto do início da cristandade. Muito incenso, muito
canto gregoriano, cerimônia pesadíssima e bela. Fiquei dentro de um espécie de
confessionário de onde assisti tudo, circunspecto, muito tocado pela liturgia
medieval e um pouco embriagado com tanta fumaça perfumada de alecrim e mirra.
No início da noite, quando a luz natural começou a declinar, um monge, portando
uma vara comprida, com uma chama na ponta, começou a acender, uma por uma, as
lamparinas de azeite que pendiam das paredes das pérgolas.
Fiquei estático observando aquela cena medieval
acontecendo em pleno século XX.
Isso foi em 1988. Esse pequeno enclave abriga
relíquias históricas inestimáveis, como códices dedicados ao estudo da
Hagiografia.
No museu, um monge de olhos bem abertos acompanha o
visitante a fim de prevenir a caçada ao "souvenir", barbaridade feita
por alguns turistas, que chegaram a arrancar lascas dos códices para levar às
escondidas. Tamanha ignorância só envergonha a espécie humana...
Algumas vezes os monges puxavam assunto comigo para
saber mais sobre o Brasil e um deles resolveu me desafiar para um embate
religioso entre o cristianismo cristão e o ortodoxo. Deixei que ele fizesse a
enaltação de sua religião e, como bom hóspede, concordei em tudo com ele.
Na manhã seguinte os monges foram pescar sardinhas
usando barcos a remo e me convidaram a acompanhá-los.
Ficamos a alguns metros da praia e lançamos as
redes, tipo tarrafas, que voltavam cheias de prateados peixinhos saltitantes. A
natureza era pródiga naquele mar sagrado do Monte Atos.
A tarde fui ajudá-los na horta, onde colhemos
cenouras, berinjelas, tomates, brócolis e preparamos o terreno para novos
plantios. Naquela época eu já estava fazendo o meu turismo rural e ecológico,
coisa que só veio a se tornar comum e muito procurada hoje em dia.
Parti do Monte Atos com pesar, pensando seriamente
em dedicar-me à vida monástica.
"Quand on est jeune on a des matins triomphants",
como dizia Victor Hugo.
Na volta para Atenas, mochila às costas, fui pegar
carona na estrada que corta os campos floridos da macedônia grega...
Renato Pozzobon