faz
bandeira um, tio.
Moisés Mendes
Todos os dias você corre o risco de cair
numa trapaça. Na internet, os golpes podem ser evitados, porque os gangsters
virtuais são analfabetos. Na vida real, as armadilhas são quase imperceptíveis,
fazem parte de nossas rotinas. Você pode ser logrado por batedores de carteira
e por grandes corporações. Boa parte do empreendedorismo brasileiro transformou
seus desvios em normas de conduta.
É a cultura do egoísmo, ensinada
inclusive nas faculdades, que ergue boates como a Kiss. Os egoístas seriam, cientificamente,
virtuosos da prosperidade. Por isso, os riscos produzidos por essa gente não
estão apenas nas casas noturnas. Estão também nas casas diurnas.
Prosperou no Brasil uma geração dita
liberal, que abre boates, bares, fábricas, presta serviços e se dá bem porque o
mundo seria só dos espertos. Nada acontece com eles porque quase todos levam a
vida sustentados por liminares. E você sabe bem que os novos espertalhões do
Brasil não são apenas chinelões como Carlinhos Cachoeira.
O novo empreendedorismo é, às vezes,
glamouroso, quer resultados imediatos e em fatura. Se os bancos podem, eles
também conseguirão. Esnobam os empreendedores clássicos, que subiram degrau por
degrau, carregaram sacos de cimento nas costas e suaram muito para conseguir
reputações. Os novos empreendedores são oportunistas com urgência e estão em
toda a parte. Você conhece dois, quatros, dez, com esse perfil.
A tragédia de Santa Maria pôs esses
predadores diante de seus contrários. São os jovens que saíram da boate e
retornaram, várias vezes, para resgatar os corpos de amigos e desconhecidos.
Quantos eles salvaram?
No seguinte à tragédia, rodei no táxi do
seu Eber Zago em Santa Maria. Eber tem 57 anos e me falou assim:
-Quantos
deles deixaremos de pegar na madrugada...Eles pedem logo que entram no táxi:
faz bandeira um, tio.
Os estudantes, em maioria, sempre têm o
dinheirinho contado. O taxista também me disse:
-Como
eles são bonitos, hoje! As meninas e os rapazes. Minha geração não era assim.
Morreram 236 moços e moças bonitos, seu
Eber. Mais de cem estão hospitalizados. Foram eles, os que morreram e os que
lutam para sobreviver, que fizeram – eles de um lado – e os oportunistas do
outro – o confronto do bem e do mal naquela madrugada.
Não
é uma simplificação, seu Eber (Mande perguntar ao dono da boate que estava lá,
quantos ele tentou salvar). Também não é a necessidade de ter heróis. É o
consolo de que, numa hora dessas, somos apresentados ao horror e aos cidadãos.
Os
guris salvadores da Rua dos Andradas, que resistem nos hospitais, não precisam
carregar o fardo de ser exemplo de nada. Mas será bom vê-los por aí de novo. Há
nos gestos desses escoteiros um acervo de companheirismo e de cidadania que não
pode ser desperdiçado.
Na
sexta feia, devolvi ao Nilson Souza um livro do português Mia Couto com um
marcador de página da Livraria Cultura. Só na quinta, quando o retirei da
prateleira, para devolvê-lo, vi a frase escrita no marcador, que já estava no
livro. Circula há décadas, é de Oscar Wilde: “Não sou jovem o suficiente para
saber tudo”.
Eu,
Nilson e Eber somos da mesma geração e asseguramos: nós também fomos jovens que
sabíamos de tudo, tudo. Mas será que nos arrastaríamos, já sem ar, atrás de
gente sumida na escuridão, como os passageiros do seu Eber se arrastaram
naquela madrugada?
Continue
rodando, seu Eber. E nunca negue a bandeira um a esses guris, mesmo quando eles
deixarem de ser jovens.
ZH, 03/02/2013