31 DE MARÇO –
LAMENTÁVEL EQUÍVOCO, TRÁGICO EQUÍVOCO.
1964 – Em março, matriculei-me na Faculdade de Arquitetura da
UFRGS, sonho acalentado desde criança. Se tudo corresse bem, seria arquiteto. O
destino conspirava a meu favor, pensava eu. A faculdade era uma das melhores do
país, com professores arquitetos consagrados, muitos com extensa bibliografia
publicada. O país ainda comemorava o sucesso internacional de Oscar Niemayer e
Lúcio Costa com sua iluminada Brasília. Arquitetura era uma profissão
respeitada, sonho de muito jovem emergente. Entretanto, o vestibular era
difícil, limitado a poucos.
Em abril,
começou a degola do corpo docente. Uns foram aposentados compulsoriamente,
outros, simplesmente mandados embora. Seu pecado: pensar de maneira
independente. Assim, saíram Demétrio e Enilda Ribeiro, Edgar Albuquerque
Graeff, Edvaldo Ruy Pereira Paiva, Luiz Fernando Corona e Nelson Souza. Ficaram
apenas os mansos.
A degola
atingiu também os alunos que faziam política estudantil. A partir desse
momento, o Centro Acadêmico da Faculdade de Arquitetura virou apenas DAFA e
seus dirigentes passaram a ser nomeados.
A faculdade de
arquitetura, com a saída do que tinha de melhor, seus cérebros, ficou
paralisada. Havia um sério problema para serem nomeados novos professores
(naquele tempo não havia concurso público, como hoje). Os arquitetos bem
sucedidos tinham sido formados por agora colegas que tinham sido demitidos e
recusaram-se a aceitar cargos que haviam sido subtraídos de seus mestres.
Restou, então,
à administração obediente à ditadura militar, catar qualquer um que se
dispusesse a substituir os professores afastados. Assim, foi formado novo
quadro, de qualquer jeito. Conta-se que uma arquiteta, que tinha virado “do
lar”, foi convidada, por telefone, quando lavava a roupa da família.
Imediatamente, aceitou.
1968 – Com a decretação do AI-5, a ditadura dentro da ditadura, os
ambientes onde eu transitava, a Faculdade de Arquitetura e o Banco do Brasil,
meu empregador, tornaram-se sufocantes. Todos os direitos individuais foram
subtraídos, os locais eram focos de delação. Todo tipo de cultura era
censurado, por motivos os mais triviais.
Era
necessário fazer alguma coisa. Foi então que meu amigo íntimo, colega de banco
e de faculdade, Felix Silveira da Rosa Neto, me convidou para participar do VAR
PALMARES, grupo armado que fazia oposição ao regime ditatorial, com a liderança
de Lamarca.
Aceitei
e comecei uma vida paralela. Meu amigo Felix, certamente como viu que eu era
uma pessoa despreparada para ações armadas, por falta de experiência e mesmo
por temperamento, começou dando-me atividades por assim dizer, burocráticas.
Passava mensagens escritas ou orais de um membro para outro (havia o medo de os
telefones estarem grampeados), vigiava policiais enquanto o grupo fazia pichações,
etc.
As
reuniões eram realizadas em meu apartamento, na Fernando Machado. Nessas
ocasiões, eu tinha que sair, por questão de segurança.
Ficava
sabendo, em primeira mão, das atividades do “meu” grupo. Assim, fiquei sabendo
do assalto ao Banco do Brasil, em Viamão, com a participação de um membro que,
mais tarde, viraria simples assaltante de banco e, da preparação e tentativa
frustrada do cônsul americano, do qual participou, também, um atual ministro de
Dilma.
O
desfecho da ação de tentativa de sequestro todo mundo já sabe. As forças de
segurança consideram ponto de honra localizar e prender os sequestradores.
Felix foi preso quando, prestes a cair na clandestinidade, foi se despedir da
mãe, no apartamento que morava, na Rua Ramiro Barcelos. Um exemplo de amor
filial.
Felix
foi torturado barbaramente para denunciar seus companheiros. Passei, naquela
época, talvez, os piores momentos de minha vida. Acabou indicando alguns que já
tinham caído na clandestinidade. Fui poupado, talvez por caridade, talvez pela
pouca importância de meu cargo.
Felix
foi condenado a treze anos de prisão. Desses treze, cumpriu oito anos de regime
fechado. Visitei-o algumas vezes na Penitenciária Agrícola de Charqueadas, depois
de condenado, quando a pressão diminuiu. Parei de visitá-lo quando minha
ex-mulher, que também tinha estado presa no DOPS, me avisou que andava sendo
seguida ostensivamente, provavelmente por um policial.
Após
essa experiência, casado e com três filhos pequenos, atirei-me de ponta cabeça
no mercado, para sobreviver.
O
mundo mudou, não existe mais ditadura militar, não existe mais União Soviética,
não existe mais comunismo, com exceção da moribunda ditadura cubana e dos
esfaimados coreanos do norte.
Ficou,
para a história, a vergonhosa ocorrência do massacre, perpetuado pelo exército,
contra setenta e quatro jovens, despreparados e mal armados, a maioria morta
depois de ser presa, na chamada “guerrilha do Araguaia” (ver “A ditadura
escancarada”, de Elio Gaspary).
Reencontrei
Felix há dois anos, em Passo Fundo. Estava em estado deplorável. Não me
reconheceu, ou fez que não me reconheceu. Falou algumas coisas sem nexo e me
deixou no meio do salão do clube em que estávamos. Apenas passou um recado
cifrado. Disse: -Só dói quando rio. Ele sabia que eu entenderia a mensagem.
Este é o texto de uma charge do Ziraldo, que saiu no Pasquim. A uma pessoa, que
pergunta como ela está, a outra, com uma espada enfiada no corpo, responde: -Só
dói quando rio.