segunda-feira, 4 de novembro de 2013


Grécia

A paixão pela Grécia começou nos meus verdes anos, quando eu morava no Rio de Janeiro e frequentava um bar em Copacabana, cujo dono, Constantin Tsamis, era um grego de Atenas. O homem ficava feliz com minha curiosidade juvenil sobre sua terra e desfiava um rosário de relatos sobre o país.

Me falava sobre Atenas, sobre a Acrópole, o bairro de Plaka, sobre o Monte Lykavittos.

Depois, me transportava em pensamento para as ilhas gregas de nomes mágicos, como Hydra, Poros, Aegina, Creta, Thira, Rodes. Algumas eu já conhecia de nome, quando da leitura de "Solo de Clarineta", do Érico Veríssimo, onde ele até faz um poema usando apenas esses nomes misteriosos das ilhas. Aliás, os nomes gregos, por si sós, já são poesia pura...

Outro frequentador do bar, o jovem carioca Paulo Quadrado, que já estivera na Grécia, sempre ia conversar com Constantin e inflamava mais a minha imaginação com seus estórias sobre gloriosas caminhadas de mochila nos campos floridos da região macedônica da Grécia. Não confundir com o país Macedônia, na mesma região, cuja capital é Skopje.

Nessa mesma época estava passando no Rio o filme "Zorba, o Grego", de Michael Cacoyannis, um cineasta francês de origem helênica que, por sinal, faleceu recentemente.
Pronto! Foi o que bastou para que eu me enamorasse perdidamente por aquele país que já vinha me fascinando há tempos.

Que riqueza psicológica tinha o cretense Zorba, magistralmente interpretado por Anthony Quinn!

E o Alan Bates no papel do inglês incauto que cai na armadilha empresarial-existencialista de Zorba?

O que dizer de Madame Hortense, a "Bouboulina", que ganhou vida com a fantástica atriz russa Lila Kedrova?
E a trágica viúva, vivida por Irene Papas?

Em uma das cenas Bouboulina evoca o almirante Canavaro, da marinha de guerra italiana e um dos seus numerosos amantes, que fora defender a Grécia, pátria intelectual da humanidade, das garras do império otomano. "Canavaro, Canavaro mio", dizia ela...

Lord Byron, o poeta britânico, também deu sua vida na Batalha de Missolonghi, em defesa dos mesmos ideais.
Em seguida, procurei o livro que deu origem ao filme. Tratava-se do título "Alexis Zorbas", escrito por Nikos Kazantsakis, grande escritor cretense, comunista convicto.

Fiquei mesmerizado com a obra de Kasantsakis e passei a devorar tudo o que ele havia escrito. Entre outros, descobri o seu intrigante "Cristo Recrucificado" e o seu memorável e definitivo, "Testamento para El Greco". Nesse último livro ele presta contas de sua vida ao famoso pintor El Greco, seu conterrâneo e mentor intelectual, apesar de terem vivido em épocas diferentes. O pintor viveu entre 1541 e 1614, foi morar em Toledo, Espanha e tornou-se o artista favorito da corte de Felipe II. Kazantsakis nasceu em 1883 e faleceu em 1957.
Quando estive na ilha de Creta, tentei encontrar o túmulo de Kasantsakis nos cemitérios locais. Me disseram que seu corpo não havia sido aceito por nenhum dos cemitérios locais por ter sido comunista e que eu procurasse numa colina, fora da cidade.

Lá fui eu em busca do túmulo, encontrando as mesmas dificuldades que muitos enfrentaram ao tentar localizar a última morada de Federico Garcia Lorca na Espanha. Ninguem sabia de nada, ninguem queria se comprometer...

Acabei encontrando o local e prestei minha homenagem ao grande escritor, que jazia, modestamente, sob uma cruz de madeira muito simples e isolada.

Seu epitáfio: Δεν ελπίζω τίποτα. Δεν φοβούμαι τίποτα. Είμαι ελεύθερος ("Não espero nada. Não temo nada. Sou livre.")

No seu testamento ao pintor o então jovem Nikos lhe dedica, poeticamente, suas viagens de descoberta que fez pela Grécia e Itália.

A passagem grega do seu livro que mais me impressionou foi a visita que fez ao Monte Atos (Agia Oros ou Montanha Sagrada), uma república monástica, protetorado grego, que fica na Península da Calcídica.

Essa península é constituída de três pequenos cabos e fica perto de Thessaloniki (Θεσσαλονίκη), a Salônica das pregações do apóstolo Paulo, segunda cidade grega em tamanho, depois da capital, Atenas. Lá são formados, até hoje, os sacerdotes ortodoxos gregos.

Kazantsakis conta estórias incríveis sobre os monges, suas buscas pela perfeição espiritual, entremeadas de boas doses de erotismo entre eles...

No início os monges moram todos juntos no monastério. À medida que sentem a necessidade de maior aprofundamento espiritual, sobem um pouco mais a montanha sagrada e passam a morar em refúgios, onde cabem somente dois ou três deles.
Finalmente, aquele que resolve abandonar definitivamente as coisas mundanas, retira-se, sozinho, para cavernas de difícil acesso, que ficam em penhascos sobre o mar.

Depois de chegar a uma dessas cavernas o asceta não se alimenta mais, no intuito de atingir um estado de êxtase. Apenas deixam uma cesta de vime pendurada sobre o abismo, quase a flor d'água, para que algum pescador, compadecido, deposite um peixe.

Quando chegam ao auge da subnutrição acreditam que já estão leves o suficiente para flutuar e alçam voo, espatifando-se nas rochas lá em baixo.

Montes de esqueletos sobre as rochas atestam essa patética escolha, o que pude constatar, anos mais tarde.
Que coisa fascinante! Eu precisava ir a Grécia!
Isso só veio a acontecer muito tempo depois.


Em uma das minhas seis viagens a Grécia, fui conhecer o Monte Atos, com o livro de Kazantsakis debaixo do braço.
Para tanto, precisei conseguir um visto de entrada na república monástica, em seu consulado ateniense.

A coisa acontece assim: depois de uma minuciosa entrevista feita por um "papás", sacerdote cristão ortodoxo, o visto pode ser concedido ou não.

Fui questionado sobre o porquê da minha visita, como tomei conhecimento do lugar, qual a minha religião, etc.
Respondi que era um brasileiro curioso sobre costumes e religiões e estava na minha busca espiritual.
O religioso me olhou sério, depois sorriu e, finalmente, concedeu-me o tão esperado visto.

Esse salvo conduto me permitia passar uma semana no Monte Atos, comendo e dormindo de graça em qualquer um dos dez monastérios abertos à visitação.

A região abriga uns vinte e tantos monastérios, muitos em ruínas e desativados, quase todos construídos nos anos 800 DC.
Fui de ônibus de Atenas a Thessaloniki. De lá, peguei outro ônibus para a pequena cidade de Uranópolis, na divisa grega com o protetorado.

Durante a viagem, o cobrador avisou que iríamos cruzar o Canal de Xerxes, uma pequena depressão na estrada. Foi o que restou do grande canal que o rei persa Xerxes mandou abrir para isolar e derrotar os gregos que se encontravam aquartelados no braço norte da Península da Calcídica, durante a segunda Guerra Médica ou Greco Pérsica (480 AC). Com a abertura do canal resolveu, tambem, o problema de contornar o Monte Atos, com suas fortes tempestades que assolavam os navios persas.

Uma obra que durou meses para ser concluída, hoje está aterrada e os menos avisados nem percebem que estão passando por um lugar que foi um dos palcos de mudanças no curso da História.

Pernoitei em Uranópolis para pegar o barco no dia seguinte.

A noite saí para conhecer aquela cidadezinha perdida no norte da Grécia. Passei por uma igreja onde estava sendo realizado um casamento.

Resolvi entrar para presenciar um verdadeiro casamento grego.

Na igreja puxei conversa com algumas pessoas, usando as frases que decorei em grego, um pouco de inglês e mímica. Fiz entender que era do Brasil, o que provocou uma admiração estrondosa e me rendeu um convite para a festa de casamento que seguiu-se à cerimônia religiosa. Fui tratado com deferência especial, posei com os noivos e fui brindado com ouzo, retsina e outras bebidas típicas gregas. O banquete constava de comidas típicas gregas, naturalmente maravilhosas.

A entrada foi taramosalata, uma delícia feita com ovas de peixe, de cor rosada, dos deuses! Depois vieram os stifados, moussakas, souvlakis, etc.

Acabei a noite dançando, de porre, junto com os comensais. Dançamos o Sirtaki, e outras danças danças com lenço.

Fui gentilmente carregado até meu hotel e dormi sonhando com Ulisses e sua jangada. Feliz, me sentindo o mais grego dos brasileiros, o próprio Zorba...


No Monte Atos 


Na manhã seguinte, ainda de ressaca, fui cedinho tomar o barco para Karyes, o pequeno porto de entrada da republiqueta.
A viagem é encantadora. O barco viaja bem junto à costa da península, permitindo visões belíssimas das montanhas e dos vilarejos litorâneos.

Na chegada ao porto, os monges fazem uma inspeção visual nos passageiros para certificar-se de que nenhuma mulher está entrando disfarçada de homem.

O acesso só é permitido a homens e animais do sexo masculino, a fim de evitar tentações, dizem eles.
Várias vezes, mulheres desprendidas, tentaram, em vão, entrar travestidas de homem.

Acho que isso é apenas uma tradição, pois os "papás" e "calóieros" podem sair de vez em quando e ficar livres para satisfazer suas necessidades.

É bem conhecido, tambem, o comportamento liberal dos monges, que fazem vistas grossas diante dos casos de homossexualismo, prática muito comum entre os mais jovens.


Os passageiros do barco foram conduzidos ao prédio onde funcionava a administração local. Passamos por uma estalagem onde girava no espeto um enorme javali, perfumando os ares com o aroma de carne assada, entremeado de aromáticas ervas, como hortelã, basilicão e tomilho.


Depois das formalidades iniciais, fui liberado e designado para ficar no monastério Simonos Petras, a uns cinco quilômetros dali.

Acompanhado de dois rapazes gregos, tambem peregrinos, tomamos a estrada e fomos caminhando por entre árvores frutíferas, flores, verduras, borboletas, insetos.

Ao longo dos séculos as hortas e jardins extrapolaram os seus limites iniciais e tomaram conta de toda a península, transformando-a num imenso jardim do Éden.

Fomos catando nozes e avelãs pelo chão e deliciando o paladar com aquele maná.

Perguntei aos rapazes sobre sua visita e eles me disseram que muitos gregos fazem essa peregrinação para cumprir promessas ou buscar solução espiritual para diversos problemas.

Me alertaram sobre o comportamento dos monges, alguns "anômalos", devido as suas preferências sexuais.

Fomos recebidos no monastério pelo monge Stavrós, que nos ofereceu doce de morango servido numa colher de sopa e café com borra no fundo, segundo as mais puras tradições da região.

Em seguida, fomos levados aos aposentos reservados aos peregrinos, passando sob pérgolas que circundavam um pátio interno, transportando-nos definitivamente para a idade média. Me senti num cenário do filme "O Nome Da Rosa"...

Os rapazes ficaram juntos em um quarto e me colocaram em outro, com uma janela fantástica para o mar, pendurado a uns 30 m acima d'água.

As paredes do monastério devem ter uns dois metros de espessura, verdadeiras fortalezas penduradas nos penhascos, prontas a enfrentar os ventos e os ataques inimigos que aconteceram ao longo dos séculos.

Fui ao banheiro e vi que o vaso sanitário não tinha fundo, deixando avistar o mar quebrando nas rochas, lá embaixo.

Achei o máximo usar aquele vaso, fazendo pontaria nas ondas com minha munição inusitadamente fecal! Os peixes deviam fazer fila nessa hora de "délivrance" para mim e de almoço para eles. Banheiro mais ecologicamente correto não pode haver...

Na hora do almoço nos convidaram a sentar à mesa com os monges, quando foi servida uma refeição que constava de sopa de legumes, deliciosa, com muito azeite de oliva e, na sequência, sardinhas fritas. Muito pão integral para acompanhar. Sucos de frutas e café, para finalizar.

A tardinha fomos convidados a participar do culto religioso, rezado segundo a Igreja Ortodoxa Cristã, bem diferente da missa da Igreja Cristã Romana que conhecemos.

Nessa celebração estão preservados os elementos primitivos do verdadeiro culto do início da cristandade. Muito incenso, muito canto gregoriano, cerimônia pesadíssima e bela. Fiquei dentro de um espécie de confessionário de onde assisti tudo, circunspecto, muito tocado pela liturgia medieval e um pouco embriagado com tanta fumaça perfumada de alecrim e mirra. No início da noite, quando a luz natural começou a declinar, um monge, portando uma vara comprida, com uma chama na ponta, começou a acender, uma por uma, as lamparinas de azeite que pendiam das paredes das pérgolas.

Fiquei estático observando aquela cena medieval acontecendo em pleno século XX.

Isso foi em 1988. Esse pequeno enclave abriga relíquias históricas inestimáveis, como códices dedicados ao estudo da Hagiografia.

No museu, um monge de olhos bem abertos acompanha o visitante a fim de prevenir a caçada ao "souvenir", barbaridade feita por alguns turistas, que chegaram a arrancar lascas dos códices para levar às escondidas. Tamanha ignorância só envergonha a espécie humana...

Algumas vezes os monges puxavam assunto comigo para saber mais sobre o Brasil e um deles resolveu me desafiar para um embate religioso entre o cristianismo cristão e o ortodoxo. Deixei que ele fizesse a enaltação de sua religião e, como bom hóspede, concordei em tudo com ele.

Na manhã seguinte os monges foram pescar sardinhas usando barcos a remo e me convidaram a acompanhá-los.
Ficamos a alguns metros da praia e lançamos as redes, tipo tarrafas, que voltavam cheias de prateados peixinhos saltitantes. A natureza era pródiga naquele mar sagrado do Monte Atos.

A tarde fui ajudá-los na horta, onde colhemos cenouras, berinjelas, tomates, brócolis e preparamos o terreno para novos plantios. Naquela época eu já estava fazendo o meu turismo rural e ecológico, coisa que só veio a se tornar comum e muito procurada hoje em dia.

Parti do Monte Atos com pesar, pensando seriamente em dedicar-me à vida monástica.
"Quand on est jeune on a des matins triomphants", como dizia Victor Hugo.


Na volta para Atenas, mochila às costas, fui pegar carona na estrada que corta os campos floridos da macedônia grega...

Renato Pozzobon

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