NINFOMANÍACA
Quase 40 anos atrás, jovem
analista, cuidei de um hipocondríaco delirante. Ao longo do tratamento, eu
sentia uma certa admiração pela coragem de meu paciente. Sem parar, sem recuar,
sem hesitar diante de inúmeros incômodos, ele procurava algo que acreditava
estar no âmago de seu próprio corpo; se ele encontrasse esse “algo”, a verdade
de seu ser seria então revelada – a ele mesmo, a mim e ao mundo.
Por sorte (dele e minha) ele se entregava menos a operações
invasivas do que endoscopias e radiografias; dizia que procurava uma mancha,
que os médicos não viam, mas que “estava lá”.
Essas investigações pareciam ser apenas mais um momento numa
longa história; nossa cultura sempre tentou encontrar, nos corpos, o lugar onde
se esconderia a alma – com pesquisas anatômicas ou inventando disciplinas e
práticas que querem dobrar o corpo e obrigá-lo a cuspir nossa verdade.
A privação dos ascéticos, que mortificam os sentidos; o
isolamento dos anacoretas, que fogem de qualquer comércio social; a imobilidade
dos estilitas, que passavam a vida no alto de uma coluna; a penitência dos que
guardam jejum; a dor dos que se açoitam impiedosamente: são esforços para levar
o corpo a mostrar a alma.
É como se existisse, em nossa cultura, uma raiva contra o
corpo pelo tanto que ele mentiria, que ele nos afastaria de nossa verdade.
De saco para mala: o primeiro roqueiro a destruir sua
guitarra foi Pete Townshend, do The Who. A coisa virou moda. Mas destruíam seu
instrumento por convicção (e não só para tirar uma foto) destruíam por quê?
Talvez a destruição fosse o jeito de forçar o instrumento a tocar a música que
eles imaginavam, que eles queriam, mas que estava além dos limites deles e de
sua guitarra.
Pois bem, alguns humanos se relacionam com seu corpo como o
roqueiro com a guitarra que ele destrói: eles estão dispostos a submeter seu
corpo a qualquer prova que toque a música esperada.
Pensei nessas procuras espirituais e musicais quando assisti
“Ninfomaníaca – Volume 1”, de Lars Von Trier. Esperava que o “Volume 2” me
desapontasse. Não tenho simpatia por Von Trier; não gostei de Dogville
(sobretudo por causa das provocações inúteis às quais o diretor recorreu no
lançamento), e me desgostaram as besteiras que Von Trier falou sobre Hitler, no
último festival de Cannes. Mas confesso: amei “Melancolia”, e “Ninfomania 1 e 2”
é um dos filmes mais tocantes e notáveis que eu vi na última década – além de ser
uma apresentação terrivelmente fidedigna de uma experiência do sexo, que pode
parecer extrema, mas não é rara. Alguns pontos (sem spoilers):
1)
Joe, a protagonista, se define como
ninfomaníaca. É um jeito de não se esconder atrás de uma patologia ou de um
vício, por exemplo. Concordo com ela, mas cuidado, a hipocrisia social vai
longe e “ninfomania” tampouco é uma categoria inocente. É útil ler o excelente
livro de Carol Groneman, “Ninfomania” (Imago).
2)
Se o sexo for apenas uma procura de prazeres,
ele não será mais relevante que a escolha de um bom vinho ou de uma fruta
madura. A dimensão trágica e espiritual do sexo aparece quando ele nos domina
como um imperativo incansável que exige sacrifício e risco. O psicanalista
Jacques Lacan dizia que o superego é uma ordem irresistível que nos manda
gozar. Se, por qualquer razão, você estiver interessado em entender o que ele
queria dizer com isso, não perca “Ninfomaníaca”.
3)
Num momento do filme, Joe perde e quer
reencontrar sua capacidade de ter orgasmos, mas cuidado: o gozo que o sexo
exige de nós (e dela) não se confunde com o orgasmo. Ao contrário, para alguns
(como o filme também mostra), o orgasmo estragaria o gozo.
4)
Os grandes libertinos dos séculos 17 e 18 não procuravam
prazeres (nem orgasmos - que eles estavam sempre postergando). A protagonista
de Von Trier, como uma heroína de Sade, tampouco procura o prazer. Até a
masturbação, para ela, é quase penosa – mais parecida com um exercício
espiritual do que com uma brincadeira aprazível.
5)
O tema de “Ninfomaníaca” é soturno, mas o
diálogo entre os dois (extraordinários) atores do filme respira uma
inteligência rara e especialmente bem-vinda nestes dias, em que a maioria
prefere fugir do sexo pela zombaria ou pelo esculacho.
6)
Só para concluir: sexo não é diversão. É para
gente grande.
Fonte: Contardo Calligares, psicanalista; Folha da Tarde. Escreve`às quintas
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