quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013




faz bandeira um, tio.

Moisés Mendes

        
     Todos os dias você corre o risco de cair numa trapaça. Na internet, os golpes podem ser evitados, porque os gangsters virtuais são analfabetos. Na vida real, as armadilhas são quase imperceptíveis, fazem parte de nossas rotinas. Você pode ser logrado por batedores de carteira e por grandes corporações. Boa parte do empreendedorismo brasileiro transformou seus desvios em normas de conduta.

        É a cultura do egoísmo, ensinada inclusive nas faculdades, que ergue boates como a Kiss. Os egoístas seriam, cientificamente, virtuosos da prosperidade. Por isso, os riscos produzidos por essa gente não estão apenas nas casas noturnas. Estão também nas casas diurnas.

        Prosperou no Brasil uma geração dita liberal, que abre boates, bares, fábricas, presta serviços e se dá bem porque o mundo seria só dos espertos. Nada acontece com eles porque quase todos levam a vida sustentados por liminares. E você sabe bem que os novos espertalhões do Brasil não são apenas chinelões como Carlinhos Cachoeira.

        O novo empreendedorismo é, às vezes, glamouroso, quer resultados imediatos e em fatura. Se os bancos podem, eles também conseguirão. Esnobam os empreendedores clássicos, que subiram degrau por degrau, carregaram sacos de cimento nas costas e suaram muito para conseguir reputações. Os novos empreendedores são oportunistas com urgência e estão em toda a parte. Você conhece dois, quatros, dez, com esse perfil.

        A tragédia de Santa Maria pôs esses predadores diante de seus contrários. São os jovens que saíram da boate e retornaram, várias vezes, para resgatar os corpos de amigos e desconhecidos. Quantos eles salvaram?

        No seguinte à tragédia, rodei no táxi do seu Eber Zago em Santa Maria. Eber tem 57 anos e me falou assim:

-Quantos deles deixaremos de pegar na madrugada...Eles pedem logo que entram no táxi: faz bandeira um, tio.

 Os estudantes, em maioria, sempre têm o dinheirinho contado. O taxista também me disse:

-Como eles são bonitos, hoje! As meninas e os rapazes. Minha geração não era assim.

        Morreram 236 moços e moças bonitos, seu Eber. Mais de cem estão hospitalizados. Foram eles, os que morreram e os que lutam para sobreviver, que fizeram – eles de um lado – e os oportunistas do outro – o confronto do bem e do mal naquela madrugada.

Não é uma simplificação, seu Eber (Mande perguntar ao dono da boate que estava lá, quantos ele tentou salvar). Também não é a necessidade de ter heróis. É o consolo de que, numa hora dessas, somos apresentados ao horror e aos cidadãos.

Os guris salvadores da Rua dos Andradas, que resistem nos hospitais, não precisam carregar o fardo de ser exemplo de nada. Mas será bom vê-los por aí de novo. Há nos gestos desses escoteiros um acervo de companheirismo e de cidadania que não pode ser desperdiçado.

Na sexta feia, devolvi ao Nilson Souza um livro do português Mia Couto com um marcador de página da Livraria Cultura. Só na quinta, quando o retirei da prateleira, para devolvê-lo, vi a frase escrita no marcador, que já estava no livro. Circula há décadas, é de Oscar Wilde: “Não sou jovem o suficiente para saber tudo”.

Eu, Nilson e Eber somos da mesma geração e asseguramos: nós também fomos jovens que sabíamos de tudo, tudo. Mas será que nos arrastaríamos, já sem ar, atrás de gente sumida na escuridão, como os passageiros do seu Eber se arrastaram naquela madrugada?

Continue rodando, seu Eber. E nunca negue a bandeira um a esses guris, mesmo quando eles deixarem de ser jovens.

ZH, 03/02/2013

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