sábado, 31 de março de 2012





31 DE MARÇO – LAMENTÁVEL EQUÍVOCO, TRÁGICO EQUÍVOCO.

1964 – Em março, matriculei-me na Faculdade de Arquitetura da UFRGS, sonho acalentado desde criança. Se tudo corresse bem, seria arquiteto. O destino conspirava a meu favor, pensava eu. A faculdade era uma das melhores do país, com professores arquitetos consagrados, muitos com extensa bibliografia publicada. O país ainda comemorava o sucesso internacional de Oscar Niemayer e Lúcio Costa com sua iluminada Brasília. Arquitetura era uma profissão respeitada, sonho de muito jovem emergente. Entretanto, o vestibular era difícil, limitado a poucos.

Em abril, começou a degola do corpo docente. Uns foram aposentados compulsoriamente, outros, simplesmente mandados embora. Seu pecado: pensar de maneira independente. Assim, saíram Demétrio e Enilda Ribeiro, Edgar Albuquerque Graeff, Edvaldo Ruy Pereira Paiva, Luiz Fernando Corona e Nelson Souza. Ficaram apenas os mansos.

A degola atingiu também os alunos que faziam política estudantil. A partir desse momento, o Centro Acadêmico da Faculdade de Arquitetura virou apenas DAFA e seus dirigentes passaram a ser nomeados.

A faculdade de arquitetura, com a saída do que tinha de melhor, seus cérebros, ficou paralisada. Havia um sério problema para serem nomeados novos professores (naquele tempo não havia concurso público, como hoje). Os arquitetos bem sucedidos tinham sido formados por agora colegas que tinham sido demitidos e recusaram-se a aceitar cargos que haviam sido subtraídos de seus mestres.

Restou, então, à administração obediente à ditadura militar, catar qualquer um que se dispusesse a substituir os professores afastados. Assim, foi formado novo quadro, de qualquer jeito. Conta-se que uma arquiteta, que tinha virado “do lar”, foi convidada, por telefone, quando lavava a roupa da família. Imediatamente, aceitou.

1968 – Com a decretação do AI-5, a ditadura dentro da ditadura, os ambientes onde eu transitava, a Faculdade de Arquitetura e o Banco do Brasil, meu empregador, tornaram-se sufocantes. Todos os direitos individuais foram subtraídos, os locais eram focos de delação. Todo tipo de cultura era censurado, por motivos os mais triviais.

                Era necessário fazer alguma coisa. Foi então que meu amigo íntimo, colega de banco e de faculdade, Felix Silveira da Rosa Neto, me convidou para participar do VAR PALMARES, grupo armado que fazia oposição ao regime ditatorial, com a liderança de Lamarca.

                Aceitei e comecei uma vida paralela. Meu amigo Felix, certamente como viu que eu era uma pessoa despreparada para ações armadas, por falta de experiência e mesmo por temperamento, começou dando-me atividades por assim dizer, burocráticas. Passava mensagens escritas ou orais de um membro para outro (havia o medo de os telefones estarem grampeados), vigiava policiais enquanto o grupo fazia pichações, etc.

                As reuniões eram realizadas em meu apartamento, na Fernando Machado. Nessas ocasiões, eu tinha que sair, por questão de segurança.

                Ficava sabendo, em primeira mão, das atividades do “meu” grupo. Assim, fiquei sabendo do assalto ao Banco do Brasil, em Viamão, com a participação de um membro que, mais tarde, viraria simples assaltante de banco e, da preparação e tentativa frustrada do cônsul americano, do qual participou, também, um atual ministro de Dilma.

                O desfecho da ação de tentativa de sequestro todo mundo já sabe. As forças de segurança consideram ponto de honra localizar e prender os sequestradores. Felix foi preso quando, prestes a cair na clandestinidade, foi se despedir da mãe, no apartamento que morava, na Rua Ramiro Barcelos. Um exemplo de amor filial.

                Felix foi torturado barbaramente para denunciar seus companheiros. Passei, naquela época, talvez, os piores momentos de minha vida. Acabou indicando alguns que já tinham caído na clandestinidade. Fui poupado, talvez por caridade, talvez pela pouca importância de meu cargo.

                Felix foi condenado a treze anos de prisão. Desses treze, cumpriu oito anos de regime fechado. Visitei-o algumas vezes na Penitenciária Agrícola de Charqueadas, depois de condenado, quando a pressão diminuiu. Parei de visitá-lo quando minha ex-mulher, que também tinha estado presa no DOPS, me avisou que andava sendo seguida ostensivamente, provavelmente por um policial.

                Após essa experiência, casado e com três filhos pequenos, atirei-me de ponta cabeça no mercado, para sobreviver.

                O mundo mudou, não existe mais ditadura militar, não existe mais União Soviética, não existe mais comunismo, com exceção da moribunda ditadura cubana e dos esfaimados coreanos do norte.

                Ficou, para a história, a vergonhosa ocorrência do massacre, perpetuado pelo exército, contra setenta e quatro jovens, despreparados e mal armados, a maioria morta depois de ser presa, na chamada “guerrilha do Araguaia” (ver “A ditadura escancarada”, de Elio Gaspary).

                Reencontrei Felix há dois anos, em Passo Fundo. Estava em estado deplorável. Não me reconheceu, ou fez que não me reconheceu. Falou algumas coisas sem nexo e me deixou no meio do salão do clube em que estávamos. Apenas passou um recado cifrado. Disse: -Só dói quando rio. Ele sabia que eu entenderia a mensagem. Este é o texto de uma charge do Ziraldo, que saiu no Pasquim. A uma pessoa, que pergunta como ela está, a outra, com uma espada enfiada no corpo, responde: -Só dói quando rio.


4 comentários:

  1. A covardia foi grande. E o pior de tudo é que até hoje tem gente que não conseguiu compreender o que aconteceu.Lamentável.

    ResponderExcluir
  2. Toda uma geração foi marcada por esse acontecimento

    ResponderExcluir