quarta-feira, 5 de setembro de 2012




CORDIALIDADE EM CRISE

No pátio do estacionamento do hospital há uma vaga reservada, guardada por um sinalizador de ferro. Quando me aproximei, duas pessoas se acercavam: um jovem estudante de medicina, forte e saudável, e um velhinho, encurvado, com sua bengala.

O jovem não sabia que quem estava atrás do insufilme era o professor que ainda não lhe dera a nota do semestre, fez olho branco e foi adiante. O velho pediu que esperasse e se dispôs â gentileza.

Surpreendido com o desfecho da cena, entrei para dar a aula da manhã e comecei perguntando quem supunham que tinha retirado o cavalete. A maioria respondeu: o velhinho. Mudei o tema de aula, e me dispus a debater a crise de cordialidade que tomou conta de nosso cotidiano, onde ninguém mais parece ter tempo nem ânimo para abrir portas, estender mãos, ceder vagas ou puxar cadeiras.

Deixei claro que nunca pretendi que alguém devesse remover o sinalizador para mim, até porque ainda n ao tenho nenhum dificuldade de locomoção.

Mas aquele cavalete, representando a atitude diante da possibilidade de ajudar alguém, devia ser usado como guia de escolha profissional.

Alertei aos estudantes que passaram a me ouvir, com olhos muito inquietos, que na nossa atividade médica diária, solicitamos exames, checamos resultados, opinamos sobre a radiografia do parente que não pode vir, nos surpreendemos com o tamanho das amígdalas no elevador, renovamos a receita que expirou, recomendamos colegas de outras especialidades, preenchemos atestados, falamos com familiares aflitos por notícias, enfim, uma infinidade de tarefas não remuneradas.

E o fazemos com uma única possibilidade de compensação: a de receber a gratidão do ajudado.

Nenhuma dúvida que quem não se sentir compensado por fazer o bem sem olhar a quem, não deve exercer qualquer profissão que imponha a relação cotidiana com pessoas. Menos ainda com pessoas fragilizadas pela doença.

Pensando naquele cavalete como uma encruzilhada de vida, eu abriria os braços para a doçura daquele vovozinho e o projetaria um clínico adorado pelos seus pacientes.

Quanto ao jovem, bem, existem tantas tarefas importantes à espera de pessoas fortes e saudáveis.


J. J. Camargo, cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia.

Extraído de ZH 7/07/2012


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