terça-feira, 18 de setembro de 2012




‘Posto que é chama’: Vinicius bebeu antes de escrever isso?

Aprendi em meus estudos de português ao longo da vida (com gramáticas, professores etc.) que a conjunção ‘posto que’ tinha sentido concessivo. No entanto, praticamente todas as pessoas do meio jurídico (em que trabalho), até mesmo juízes, a utilizam com sentido explicativo. Para piorar, sempre recordo dos versos de Vinicius de Moraes: ‘Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure’. Teria o poetinha errado ao utilizar o ‘posto que’ como conjunção explicativa ou eu é que não compreendi o soneto? Afinal, embora o ‘mas’ indique oposição entre a primeira frase e a segunda (parecendo confirmar a utilização do ‘posto que’ como concessão), uma chama não é imortal – pelo menos até onde sei. Desde já, obrigada! (Thalita Arouche)
Em primeiro lugar, é muito provável que o poeta Vinicius de Moraes (1913-1980) tivesse, sim, tomado algumas doses de “cachorro engarrafado” – isto é, de uísque, que ele chamava de “o melhor amigo do homem” – quando escreveu sua obra-prima Soneto de fidelidade, onde Thalita foi buscar os versos acima. Não se deve ver nisso, porém, nada além de um cálculo estatístico que leva em conta a baixa frequência de momentos de sobriedade em sua vida. No estilo ao mesmo tempo rigoroso e fluido do soneto, um dos mais perfeitos de nossa literatura, não se percebe o menor traço de embriaguez.
No entanto, Vinicius contrariou frontalmente a gramática tradicional com seu uso de “posto que” como conjunção explicativa (ou causal, dependendo do autor), bem observado por Thalita. O sentido dos versos é claro: o amor não é imortal, visto que é chama, isto é, por ser chama, mas o poeta deseja que, enquanto durar, tenha brilho infinito. Só que Vinicius optou por não usar o “visto que”, que, além de caber na métrica, agradaria aos conservadores da língua. Foi mesmo de “posto que”, uma locução conjuntiva controversa.
Os gramáticos tradicionais atribuem a “posto que” valor exclusivamente concessivo, o mesmo de “embora”, como na seguinte frase: “Gosto dele, posto que seja meio antipático”. Para eles, qualquer uso diferente é erro e pronto. O português brasileiro, porém, ignora há muitas décadas essa análise e insiste em empregar “posto que” com papel explicativo. Isso não se dá por ignorância, ou não apenas por ignorância: encontra acolhida entre falantes cultos e parece se basear numa análise alternativa da expressão. Regras mudam.
Nenhuma novidade nisso. Um exemplo de como o reino das conjunções sempre foi movediço é o uso que o padre Antônio Vieira e outros autores antigos faziam da conjunção “segundo” – hoje empregada apenas em papel conformativo, como sinônimo de “conforme” – com sentido causal: “Mais nascimentos havíamos mister, segundo são muitas as mortes”.
Deliberadamente ou não, Vinicius de Moraes, um dos mestres indiscutíveis do português brasileiro, tomou o partido da língua viva – o que no caso dele faz o maior sentido – e deu ao pessoal da linha dura gramatical uma dor de cabeça infinita (enquanto durar): se abonações literárias sempre foram as cartas mais valiosas de seu jogo, numa mesa de pôquer o Soneto de fidelidade seria um royal straight flush.

Sérgio Rodrigues - Sobre palavras

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