domingo, 13 de maio de 2012

blogue do zeca
a bela adormecida
TOLERÂNCIA

Gosto muito do texto do David Coimbra, porque além de revelador de um cuidado muito grande com a escrita, ele aborda assuntos que, às vezes, passam despercebidos por muitas pessoas.

Túnel do Tempo: O julgamento de Flaubert

12 de maio de 20120
Flaubert, quando escrevia, pegava cada palavra e a media, sopesava-a, examinavaa de viés e revés e só a incrustava na frase quando atingisse a certeza de que o conjunto ficaria nada menos do que perfeito.
Ainda assim, no dia seguinte, relia o já escrito e cortava e acrescentava e substituía ou, não raro, riscava tudo.
Madame Bovary, sua maior obra, consumiu-lhe cinco anos da vida.
Flaubert avançava no texto com critério de ourives, frase a frase, página a página, menos de uma página por dia.
Bem menos – tenho cá uma edição da Abril, da coleção Imortais da Literatura Universal, capa vermelha com dourado, na qual a frase que fecha o romance, “ Acaba de receber a Legião de Honra”, está pendurada no meio da página 261.
Quando enfim Flaubert pingou o ponto final na trama, precisamente depois da frase reproduzida acima, uma revista de Paris interessou-se em publicá-la em capítulos.
Assim foi feito.
Mas bastou a primeira parte da história vir a público para que os leitores reagissem.
Nada bem, aliás.
O diretor de redação da revista escabelava-se ao ver sua mesa de trabalho coberta por cartas de protesto.
Uns reclamavam que a história era imoral, outros que ofendia os moradores do campo por retratar pejorativamente os seus costumes.
O diretor não suportou a pressão.
Sustou a publicação do folhetim.
Não foi o suficiente para a sanha moralista francesa.
Flaubert foi processado.
No começo de 1857, arrastaram-no ao banco dos réus.
Depois de uma semana de debates, acabou inocentado.
Mas, no veredicto, o juiz aproveitou para passar-lhe uma reprimenda, observando, estufado de autoridade legal e artística: – Existem limites que a literatura, mesmo a literatura ligeira, não deve transgredir.
Não foi necessário nem o distanciamento histórico para que o mundo descobrisse a extensão da estupidez desse juiz.
Publicado em livro, Madame Bovary, classificado pelo magistrado como “ literatura ligeira”, alcançou 300 edições, foi traduzido para praticamente todas as línguas civilizadas e transformou-se num dos maiores clássicos da literatura de todos os tempos.
Se o juiz se restringisse a fazer o seu trabalho, absolvendo tecnicamente Flaubert, como absolveu, seria incensado pela posteridade.
Mas não.
Ele aproveitou para dar o seu palpite moral e literário, e foi infeliz em ambos.
É um dilema da Justiça, sei.
A Justiça não é matemática, não é exata, até porque sua matéria-prima são conflitos humanos.
Mas o juiz, qualquer juiz, tem a obrigação de valer-se de um predicado subjetivo e vago, porém inestimável: o bom senso.
E o bom senso recomenda, sempre, que a autoridade não deve ser autoritária.
Deve ser tolerante e até compreensiva com os dilemas e as falhas humanas.
Há muitos casos, no Brasil de hoje, em que a Lei não chega a tal excelência.
Há regulamentos em excesso, no país.
Normas em excesso.
Até no ambiente prosaico do futebol.
Por exemplo, a Procuradoria do Tribunal da CBF.
O procurador parece empenhado em descobrir crimes mesmo que não haja vítimas.
Pretender punir comemorações de gol, por exemplo, é um abuso tão óbvio quanto tacanho.
Embora, isso também é verdade, vivamos um tempo de proibições e moralismo, um tempo em que se acredita que a solução para todos os males é a lei.
Não é.
Nunca foi.
E, mais tarde, como ocorreu com o juiz que espinafrou Flaubert, vai-se perceber que muito do que hoje tem a aparência de correto e rigoroso, não passa, de fato, de cândida estupidez.
*Texto publicado na Zero Hora em 09/07/2008.

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